Compartilho aqui um texto de 2012 escrito em um dos dias dos 13 anos (2004 - 2016) que atuei na Fundação Casa, como professora.
Diário de Campo – 21/03/2012
Fundação CasaAutora: Daniela del Sole
O ritual se inicia quando visto um longo avental azul, de manga, algo obrigatório para adentrar o recinto. De uma guarita, alguém que me vê abre uma porta azul, mais pesada que as que temos nos locais tidos como mais seguros. Digo: -Bom dia! E passo por um procedimento de revista corporal por uma funcionária que verifica se não entro com cd, pen drive, celular, bolsa ou água. Insisto em levar uma garrafa vazia d’água. Anotam meu nome, horário e RG num livro preto. Encaminho-me em direção a mais uma guarita. Dessa vez, não se ouvem mais os gritos da Marginal Tietê e já é possível encontrar olhos cansados, que passaram a noite trabalhando, as roseiras e alguns que chegam comigo. Passo por novo procedimento de revista e mais dois portões gigantescos, rodeados por enormes muralhas. Ando por um corredor em que encontro baratas (para lembrar a paixão segundo G.H. da Clarice), bebedouro em que abasteço minha garrafa, colchões espalhados e pessoas. Digo “Bom dia”, pego um pedaço de giz, apagador e ouço: “Os meninos já estão na sala aguardando.” Entro em mais uma grade que dá de frente para uma quadra. Essa quadra é rodeada de quartos, salas de aula, refeitório e banheiros. É o Panóptico de Foucault. Dali todos são vistos por guardas que “moram” nas guaritas, lá no alto da muralha. Entro na sala designada, conforme o horário do dia. Só há duas opções: Nível II: para alunos de 5ª a 8ª série e Nível III para alunos de nível médio. Ministro aulas de História, Geografia, Filosofia e Sociologia para quatro turmas, pois essa estrutura se subdivide em duas unidades denominadas: Casa “XX” e “XX”. Quando entro na sala, começo a retomar o que estudamos na aula anterior. Nesse local, não podemos ter muitos recursos, além do bom e velho diálogo. Então, sempre começo conversando, para sentir como está o clima. Verifico se temos alunos novos, pois quase todos os dias têm. Hoje também teve. Introduzo o assunto e procuro despertar o interesse e a atenção do grupo para o que trago de novo. As salas de nível médio têm entre 4 e 9 alunos e as de ensino fundamental, uma média de 20. A maioria dos alunos do fundamental ainda não sabe ler, pois é aquele aluno que em determinado momento de sua vida, abandonou a escola.
Essas unidades recebem adolescentes infratores multi reincidentes, ou seja, aqueles que têm mais de quatro passagens pela fundação e cometeram delitos graves ou gravíssimos tais como: assassinato, estupro, tráfico etc. Faz parte da rotina que os agentes socioeducativos presentes nas salas perguntem e observem a aula. É de responsabilidade deles conferirem a quantidade de materiais que entra e sai. Afora essa rotina, os professores se envolvem em temas transversais. Nesse bimestre, a fundação escolheu “Saúde e qualidade de vida”. E assim, conversamos sobre o que é ter um corpo são e uma mente sã. Tenho a liberdade de propor exercícios de respiração e alongamento quando temos esses projetos. O diálogo é imprescindível, mas sempre numa perspectiva de não querer doutrinar ninguém. Há professores que se utilizam desse trabalho para orientar os jovens no sentido religioso, em busca de uma regeneração e de uma conduta melhor para eles. Do meu ponto de vista, enquanto meu compromisso for com a paz e o respeito, é possível trabalhar com o debate constante no campo das ideias, mas não tenho condições de dizer-lhes o que é bom ou não. Também não sei qual seria a melhor “punição” para um estuprador ou assassino. Eles sabem que a sociedade tem preconceitos em relação a eles. Penso que a sociedade também não sabe o que deve ser feito. Porém, nessas unidades há uma rotina completa com aulas da escola formal, curso de Yôga, violão, artes plásticas, literatura, confecção de velas, panificação, mercado de trabalho, dança etc. Não há tempo ocioso e a disciplina é o que vigora. Somos chamados de senhor e senhora. A entrada para a sala de aula é realizada em filas. A ida ao banheiro é controlada, assim como todas as atitudes solicitadas. Horários para refeições, medicamentos, banhos, escovação, fumar etc.
Hoje tivemos HTPC e corrigimos algumas avaliações diagnósticas aplicadas ontem aos adolescentes. Reconhecemos que o nível II obteve melhores resultados que o III. Os professores estão preocupados com o ensino de matemática, pois algumas turmas ainda estão sem professor. Também não há professores de artes. O relacionamento entre professores, nesses últimos nove anos, tem sido de companheirismo e partilha, na medida em que, no passado, muitos foram os momentos de ficarmos “de refém” e necessitarmos ter em quem nos apoiar, pois nessa época, os agentes educacionais tinham medo de entrar no pátio. Hoje em dia, existe a preocupação de entrarmos e sairmos juntos.
A ausência dos celulares faz da
escola algo diferente do que encontramos aqui fora. Acabamos as correções,
comentários e procedimentos para melhorar a aprendizagem dos estudantes. Saímos
por todas as portas. Deixamos um universo de gírias e de um jeito de ser
completamente diferente do que temos. Suas músicas, gestos, danças, dores e
preconceitos são outros. Porém, concluo que levo a certeza de um momento. Nesse
momento, em que eu sou a ponte entre um mundo e outro, procuro o melhor que a
humanidade já pôde construir. Busco as melhores referências teóricas, as
melhores experiências vivenciadas e insisto na construção de um olhar de
respeito ao diferente. Tento ser leve, ainda que o ambiente seja pesado. Gosto
do caminho da sensibilidade, pois reconheço que é um caminho que me fez ficar
por ali por tantos anos. Tento entender seus porquês, vendo-os como humanos.
Como na obra de Dostoiévski ou na do Marquês de Sade, tento acreditar que a
dor, a ira, a angústia e nossos instintos mais violentos podem se transformar
em algo que não sabemos. Mas em algo não fere o corpo do outro. Como? Ainda
estou descobrindo. E há algo em mim, que faz com que eu acredite que um ser
tocado pode extravasar e libertar a violência por meio da arte, da escrita, ou
de caminhos que nós ainda não sabemos. Gosto de ouvir os caminhos almejados.
Por mais que não possam ser verdadeiros. Gosto de saber o que eles pensam e
como pensam. Ver sutilezas, fragilidades e forças que querem chegar à última
porta, que é a primeira, aquela em que se anota o horário de saída. Para quem
deixou seus pertences, é só retirá-los. Para quem só pertence a si mesmo, a
saída é liberada.
Para saber mais, acesse: https://www.blogger.com/blog/post/edit/113158036090411001/2446060927740475998
Publicações relacionadas:
https://www.blogger.com/blog/post/edit/113158036090411001/2777591820926081492
https://www.blogger.com/blog/post/edit/113158036090411001/2736802659947835248
Nenhum comentário:
Postar um comentário